ENTREVISTA COM O PROFESSOR JEAN DAVID CAPRACE

NAVALETTER DE DEZEMBRO

 

1) Você se formou na Université de Liège. Como foi seu período de graduação?

É diferente na Bélgica. Lá temos dois tipos de engenheiros: os industriais e os engenheiros civis. Os engenheiros civis estudam em universidades e os engenheiros industriais em escolas de engenharias, semelhantes às da França. Antigamente, quando eu estudei, eram 4 anos de curso. Agora passou a ser 5 anos, como nas universidades. Na Bélgica costumávamos dizer que o engenheiro industrial é capaz e desmontar um motor de carro e montar novamente, enquanto o engenheiro civil só conhecia as equações. Era um clichê, mas com um pouco de verdade. Os engenheiros industriais estavam mais próximos da indústria. Fiz minha formação com ênfase em mecânica e depois uma orientação em aeronáutica. Minha especialização na aérea naval era um sonho desde criança, me impressionava pela dimensão dos navios. Na Bélgica não dá para cursar engenharia naval diretamente. O engenheiro na Europa é mais abrangente, flexível. Então, a única forma de me aproximar da área naval era começar com mecânica e aerodinâmica. A transição para a naval foi muito simples, pois ela é semelhante a essas áreas. Comento com meus alunos que, nessa época de mercado em baixa, uma das oportunidades é a área de aeronáutica, que funciona muito bem no brasil, pois constrói e projeta aviões para o mundo inteiro. Então, trata-se de uma opção para vocês, tem logística, tem aerodinâmica que é semelhante a hidrodinâmica.

2) Você é formado em uma universidade europeia e certamente teve contato com a realidade do estágio lá. Como foi essa experiência?

Acho que há menos estágios na Bélgica. Fiz um pequeno estágio de três semanas, somente para conhecer, como uma imersão na empresa. Foi em uma empresa que trabalha na área ferroviária na Europa. Passei cinco meses em uma empresa desenvolvendo meu projeto, fora da escola. Acho muito legal, pois você tem tutor da empresa e um tutor da universidade, o que te proporciona uma dupla orientação. E eu ainda tive uma oportunidade onde confiaram em mim e falaram “Você tem 20 mil euros. Você precisa desenvolver tudo, toda construção em cinco meses.”, e nem formado eu estava. Era um laboratório de pesquisa, não da universidade. Foi uma responsabilidade muito estressante, mas genial. Você concretiza um projeto de verdade, o qual, depois, outros alunos continuaram.

3) Pelo que conhece do mercado aqui no Brasil, você acha que existe alguma diferença entre o que se espera de um estagiário lá fora e aqui?

Não sei, não tive a experiência aqui. Não posso falar como é exatamente o trabalho do estagiário aqui.  Mas, pelo que eu ouvi em conversas no corredor, o trabalho aqui parece ser mais de tecnólogo do que de engenheiro. Acho que na América do Sul a proporção do número de engenheiros nas empresas é muito inferior à de uma indústria na Europa.

4) Você possui uma vasta experiência na área de otimização de processos, de construção naval, sistemas offshore, de transportes, e desenvolve trabalhos relacionados a isso no LABSEN. Como é trabalhar nesse setor aqui no Brasil?

Hoje, todas as grandes empresas geram dados. Até nós geramos dados com nosso celular sem saber, talvez. Usar corretamente esses dados de produção, de logística, ou tentar extrair conhecimento valioso da empresa pros dados, acho que é um futuro. Aqui no Brasil já sabemos que preencher dados é algo valioso. O problema agora é analisar corretamente os dados, desenvolver simulações para predizer o futuro para melhorar o sistema atual de logística de produção.

5) Com toda sua bagagem nesse ramo, como você vê a indústria da construção naval no Brasil? Porque nos falta competitividade no mercado mundial? Você apontaria por onde devemos começar a mudar?

Há uma diferença entre competitividade e produtividade. A produtividade está incluída na competitividade. A nossa competitividade depende do salário médio e muitos outros fatores. As oportunidades no Brasil ainda são enormes. A produtividade na produção naval está ruim, em baixa, devido a vários fatores, como, por exemplo, a criação de estaleiros em lugares que não tinham nada sem experiência achando que em 2 anos o estaleiro chegaria a nível internacional, e outros grandes erros. Acho que é possível nossa indústria naval chegar a um nível de produtividade internacional. Porém, teremos que usar tecnologias. Não só comprar maquinas modernas, mas também saber usar essas máquinas modernas e desenvolver os processos da maneira certa. A simulação e as tecnologias avançadas podem ser uma direção para atingir esse objetivo.

6) O que motivou a sua vinda para o Brasil e permanência aqui?

A história da minha mudança para o brasil, de porque cheguei aqui? Cheguei na América do Sul em 2004, minha primeira experiência foi no Equador. Aqui, após um mês de trabalho, já lhe convidam para tomar uma cerveja e pagaram. Na Europa não pagariam. É impressionante, gente de coração bom, gostei muito dessa cultura. Por oportunidade, eu fiz meu pós-doutorado aqui em 2010. Gostei. Quando cheguei aqui, a indústria estava no topo. Em seis meses, tudo caiu. Mas ainda vejo excelentes oportunidades aqui. O mercado está ruim em vários lugares. E, na Bélgica, ser professor não é assim fácil. Você espera dois professores se aposentarem pra abrir uma vaga. Então você fica anos e anos tentando uma vaga, e talvez um estrangeiro chegue e pegue a vaga.

7) Você acha que a indústria naval retoma nos próximos anos? Apontaria alguma área como tendo um bom potencial de desenvolvimento em nosso país?

Acho que a atividade não vai parar, é preciso extrair o petróleo do pré-sal, isso vai ficar como uma prioridade. Oportunidade de retomada em uma escala alta creio que não. Não deve ter uma construção de 19 sondas, por exemplo. Acho que o que vai ser bom no futuro é o transporte aquaviário no Norte e no Sul do Brasil.  Existe muito investimento nos portos brasileiros. Depois é necessário pensar em outras maneiras de se diversificar. Na Europa, o que aconteceu recentemente é que, além de ter cruzeiros, navios em geral com alta complexidade offshore, tem energia do mar, tem muitas pesquisas em hidrodinâmica. Essas turbinas para aproveitar corrente e energia das ondas etc. Aqui no Brasil vai ter um mercado considerável de descomissionamento das plataformas fixas. Isso aí é uma opção e pode ter outras, por exemplo, navios tanques, aliviadores, poderiam ser construídos aqui. A ideia é que para ter uma indústria sustentável você precisa chegar a um certo nível de produtividade e poder pegar vários contratos.

8) Há burburinhos pelo corredor da Naval de que você participou de alguma fase do projeto do novo canal do Panamá. O que você pode nos dizer sobre isso?

Então, participei quando estava na Bélgica. Trabalhei em desenvolvimento de otimização de estruturas. Mas não usando elementos finitos, a ideia era ter equações diferenciais de painéis reforçados, e conseguir resolver as equações de maneira analítica, ou seja, muito rápido. Isso foi desenvolvido até pelo meu mentor. Ele tinha um algoritmo de otimização.  A minha contribuição foi acrescentar custos de produção, efeitos de distorções na chapa. E então começamos um novo projeto para otimizar as novas portas do canal do Panamá.

9) Quais os impactos do novo Canal do Panamá na economia mundial? Como o Brasil estaria envolvido nessa mudança?

O impacto é instantâneo. Os navios já foram construídos planejados para o novo canal. Antes dele ser aberto, os new panamax já estavam disponíveis para passar por lá. A economia é simples: você aumenta o tamanho dos navios, logo, reduz o custo de transporte. Isso funciona somente se você consegue encher o navio. Mas é imediato. Para o Brasil, depende das frotas de navegação. Não é muito impactante, pois o Brasil possui muita exportação de minério de ferro para a China, Europa, e não possui linhas grandes que passam pelo canal do Panamá.

10) As experiências que você acumulou durante a carreira são realmente incríveis. Além de tudo, já deu aula em várias universidades pelo mundo. Como foi a decisão de virar professor?

Não foi uma decisão, foi mais uma oportunidade. Que agarrei. Antigamente, quando estava no lugar de vocês, ainda estudando, falava que não queria nunca ficar horas na frente de um computador, que não gostava de programar. Hoje é o que mais fiz na minha vida, pois minha carreira como pesquisador é programar. Quando entrei na universidade, falei que não gostaria de fazer um doutorado. Hoje tenho um. Eu tive que fazer um, porque eu já estava há muito tempo e essa era a única maneira de justificar todo esse tempo lá dentro. Na verdade, foi tudo uma sucessão de decisões mais ou menos voluntárias e involuntárias. Mas a realidade é que eu gosto, gosto bastante de ensinar.

11) Hoje, estando dentro do corpo docente do nosso curso, qual a sua opinião sobre a formação do engenheiro naval aqui no Brasil em relação aos de outras partes do mundo? Você acha que o nosso curso nos prepara de maneira satisfatória para o mercado de trabalho, não só aqui no Brasil, mas a nível mundial? Como podemos melhorar?

Acho que tem disciplinas demais, é muito mais completo, temos tudo aqui. Tem muita máquina, muito projeto, muita estrutura, muita logística. Do que vejo na minha experiência internacional, há muito poucos cursos assim, com uma visão tão completa. O que talvez torna muito difícil para vocês, na verdade. Aqui temos muitas horas de ensino. Já estamos com um projeto pra mudar isso. Daqui a pouco vocês vão ver uma mudança. O nível é excelente. Agora precisamos modernizar e focar em mais horas práticas. Também acho que, eliminando várias disciplinas, poderemos dar mais flexibilidade para vocês escolherem disciplinas nas quais querem dar mais ênfase.  Tipo “Quero fazer ênfase em estrutura”, então precisa fazer essas oito disciplinas aqui. Isso alivia e dá maior oportunidade de interagir e escolher a linha para qual quer seu futuro.

12) Como funcionaria esse esquema de ênfases? Teria alguma diferença perante o mercado de trabalho?

Nesse esquema de ênfases, você continua saindo um Engenheiro Naval. A única diferença é que sai com uma ênfase em alguma área. Isso porque o básico do básico e o básico do profissional nós não podemos mudar, todos têm que ver isso. Esse esquema é mais pra aliviar a carga horária e deixar vocês mais livres pra escolher o que querem ver. Se precisar estudar mais máquinas, você pode escolher estudar mais máquinas. De maneira voluntária, não imposta.

13) Estamos passando por momentos difíceis em relação a emprego na nossa área aqui no Brasil. Buscar oportunidades fora do país seria uma boa opção? Qual a dica que você daria para os colegas que desejam trabalhar em outros países?

Tudo se pode imaginar, mas, quando você mais precisa de engenheiro no país pra melhorar a situação, você iria trabalhar fora? Tem que pensar nisso. Bom, trabalhar fora não é fácil, especialmente na Europa, nas atuais condições. Se você não tem um diploma da Europa, eu acho extremamente difícil você conseguir um bom emprego lá. Se vocês pretendem fazer isso, minha recomendação é estudar fora primeiro, ter um diploma de fora, e aí sim procurar um emprego lá.

14) Qual sua dica para os alunos que estão se formando nessa época de crise?

Meu conselho é continuar estudando. Se você tiver a oportunidade, se seus pais tiverem condições de financiar isso, sem dúvida nenhuma, estudar, continuar estudando é a melhor opção. Não estou falando de prorrogar sua formatura (risos)! Isso não serve pra nada. Quanto menos tempo você levar pra se formar, melhor. E hoje vocês podem aproveitar melhor o sistema de puxar matérias do mestrado ainda na graduação. Teve um aluno que fez isso, e até conseguiu se cadastrar no mestrado antes de concluir a graduação. E hoje ele vem conciliando os dois. Ou seja, isso dá uma vantagem pra vocês no mercado de trabalho. O mercado está em crise e vocês vão sair com um mestrado, ou quem sabe um doutorado, caso vocês queiram seguir esse caminho, e isso dá uma vantagem considerável. Então, se puderem, continuem estudando.

15) Quais as vantagens, em termos de conhecimento, de chegar no mercado de trabalho com um mestrado ou um doutorado, por exemplo?

Bom, as vantagens de um mestrado é essa capacidade de inovação. Vocês vão ter uma visão das novas tecnologias que, infelizmente, vocês não têm na graduação aqui. Ou seja, você vai ter na empresa a facilidade de tentar aplicar técnicas das quais você já ouviu falar, ou já aplicou um pouquinho. Ou seja, você vai crescer muito mais rápido, vai progredir mais rápido na empresa, mostrando que você já tem uma motivação a resolver problemas com técnicas de que você não tinha conhecimento na graduação. Já para o doutorado, talvez seja mais difícil achar uma vantagem direta, porque é mais pesquisa, inovação, etc. Ter um conhecimento muito profundo num assunto. Pra ser professor no meio acadêmico, é obrigatório. Pra uma empresa, talvez não. Mas em grades empresas, centros de pesquisa, como o Cenpes, por exemplo, se vocês quiserem trabalhar lá, também é obrigatório.

16) Se o aluno tiver a oportunidade de fazer uma pós graduação fora, você acha que ele tem mais chance de conseguir um emprego aqui?

Olha, aqui eu não sei dizer muito bem. Talvez, não sei. Mas com certeza você abre portas lá fora. Então vale super a pena investir nisso. É o que eu sempre digo pros meus alunos: ter experiência internacional é muito bom. Se você tem a oportunidade de escolher entre ir pra fora na graduação ou na pós, sem dúvida é mais vantajoso ir na pós. Isso porque na graduação você só vai passar um tempo lá, seu diploma vai ser daqui. Essa experiência vai ser quase invisível no seu currículo. Ou seja, você não vai aproveitar 100% dessa experiência internacional na graduação. Enquanto, no mestrado, ter o diploma emitido por uma universidade de fora é excelente pro seu currículo. Além de mostrar que você morou em outro país, aprendeu outra língua, conviveu com outras culturas.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *