No início do mês de novembro, tivemos o prazer de conversar com a Engenheira Naval Cristiane de Marsillac, CEO da Mercosul Line, uma das empresas mais importantes do setor de logística e transportes na América do Sul.
Falamos do tempo na faculdade, as dificuldades do início da vida profissional, oportunidades de mercado, desafios do setor de transportes e sobre o papel da mulher engenheira.
Cristiane possui mestrado em Trasportes Marítimos pela COPPE e já trabalhou em diversas empresas renomadas como: Vale, Prumo, Grupo Bravante e Dock Brasil. Dedicou grande parte de sua carreira ao setor logística e transportes e foi protagonista da implantação do porto de Açu.
Você se formou em Engenharia Naval e Oceânica na UFRJ em 1991. Durante a sua formação, sentiu falta de contatos com experiências fora de sala de aula?
Sim, senti a falta de mais experiência voltada à indústria durante a minha formação. Acho que a faculdade deveria desenvolver uma integração maior com o setor, sendo uma fonte de novas ideias para a indústria e, ao mesmo tempo, a indústria sendo uma fonte de inspiração para a universidade: trazer o que está acontecendo, novas tecnologias e etc. As próprias disciplinas poderiam pensar em formas de estabelecer trabalhos que necessitassem contato com as empresas do setor, tais como empresas de navegação em diversos segmentos, estaleiro, fabricantes dos principais equipamentos, portos, adminsitrações portuárias, brokers, sociedades classificadoras etc. Porém, o aluno precisa ser protagonista, não ficar esperando que a faculdade ou alguém pense em tudo e resolva esse problema para vocês. Acho que vocês estão certíssimos em criar a Liga Naval. Isso mostra que vocês estão se unindo para pensar no assunto e desenvolver a universidade de vocês. Tudo que vocês trouxerem para a naval vai beneficiar vocês e a todos os graduandos. O que vai dar futuro para vocês é a busca por conhecimento, buscarem a evolução, chegar com a proposição de ideia. Quando forem se candidatar a uma vaga em uma empresa, ou desenvolver seu próprio negócio, vai contar muito a capacidade de vocês transformarem, realizarem. Vocês tem um bom nome por trás de vocês (UFRJ), que vocês podem usar no desenvolvimento de projetos junto ao setor. Tirem proveito disso. Além disso, é tempo de uma mudança de mercado, com menos empregos formais, e mais empreendedorismo. Fica a dica aí!
Você acha que o engenheiro naval brasileiro é bem visto no mercado internacional?
Um engenheiro naval é bem visto em qualquer mercado. Mercado nacional ou internacional, sempre é bem visto. O mercado internacional vê o engenheiro naval de uma forma mais técnica, pensando numa função ligada à construção, inspeção, operação, planejamento, manutenção etc. Já aqui no Brasil, o engenheiro naval é bem visto em áreas mais amplas, não necessariamente técnicas, mas atividades que requerem uma visão estruturada, um raciocínio numérico, a capacidade de uma visão macro, a habilidade do engenheiro desenvolver desde o projeto até a execução da obra. Estamos falando aqui da visão sistêmica, da capacidade de resolver problemas. Daí abre-se a possibilidade de se ter engenheiros em atividades financeiras, administrativas, controles de projetos etc. Por exemplo, o nosso antigo Ministro da Fazenda, o Joaquim Levi, é engenheiro naval. Outro aspecto qualificador é estudar em uma Universidade Federal no país, uma experiência que por si só traz fibra, desafios e aprendizados que irão ajudá-los em suas carreiras e empreendimentos no futuro.
Você acha que a indústria, em geral, está aberta para acolher alunos com esse tipo de proposta?
Acho sim que as boas empresas vêem com bons olhos a integração com a faculdade. Elas querem atrair gente boa, serem conhecidas na universidade como uma boa empresa para se trabalhar. E acho que as empresas líderes possuem o papel de contribuir para o desenvolvimento da formação dos alunos. O desafio é chegar com algo estruturado para as empresas!
Observamos que em várias empresas em que trabalhou, você atuou na área de transportes e logística. Você identificou esse perfil quando?
Eu me formei em uma época igual a essa em que vocês estão se formando agora. Em 1991, o clima era muito parecido. Quando eu fui buscar minhas eletivas, eu foquei na área de transporte, pois era o assunto que, para mim, era mais gratificante fazer. Depois, segui um mestrado na mesma área. Naquela época, eu ainda estava trabalhando em um estaleiro como estagiária, mas os estaleiros estavam em crise e reduziram as efetivações. Mas foi muito bom para mim, foi uma oportunidade de me reforçar academicamente. Quando entrei no mercado de trabalho, já entrei com o diferencial de ter o mestrado em transportes marítimos, coisa que dificilmente eu teria conseguido fazer mais tarde.
Você acha que o mestrado é uma opção nessa época de crise?
É uma ótima opção! O conhecimento técnico é uma coisa que ninguém tira de você. Nesse momento em que o mercado não está tão bom, quando não se tem família para criar, deve-se investir na formação. Na época em que me formei, fiz o mestrado e passei a ter uma visão técnica de transportes, administração, pesquisa operacional, economia, análise de investimentos. Foi muito bom, recomendo. Estuda, estuda, estuda, não fica parado!
Você acha que o mestrado pode prejudicar a pessoa, tendo em vista que enquanto ela está estudando outras já estão pegando experiência prática no mercado?
Dependendo do que você quer para sua vida, existem vários caminhos; não há apenas um caminho certo. Mas, para aquilo que eu estava propondo para mim, o mestrado foi muito importante. Não foi uma decisão voluntária. Eu fui porque o mercado estava ruim, então eu acho que dei muita sorte. Caso o mercado não estivesse ruim e eu tivesse entrado em um estaleiro naquela hora, provavelmente não teria vivenciado tantos projetos interessantes na minha vida profissional.
No início da sua vida profissional, você passou por grandes dificuldades? Quais? Alguma dica para enfrentar esses desafios?
Meu primeiro estágio foi em Acari, Fazenda Botafogo, em uma empresa que fazia equipamentos para navios, tais como mancais de escora, escadas de portaló, etc. Acho que a maior dificuldade desse trabalho era conseguir pegar os seis ônibus diários entre casa, faculdade e trabalho. Logicamente, a primeira vez que você chega num trabalho você pensa “e agora? ”, isso é natural. Aos poucos, você define o seu espaço. Meu primeiro emprego depois de formada veio a partir do meu mestrado. Um dos meus orientadores tinha um projeto externo e me chamou para ajudar. Tratava-se de um projeto de consultoria no qual precisávamos desenvolver uma solução de revisão de processos e sistemas de planejamento em oficinas da antiga Mesbla Veículos. Apesar de não ser uma atividade no setor de transportes, a experiência me trouxe muita visão de processos e espaço para colaborar com ideias. As dificuldades variam de acordo com aquilo que você se propõe a fazer e desafia-se a aprender.
Como CEO da Mercosul Line, você aplica muitos conceitos de naval ou usa mais conceitos econômicos?
Conceitos técnicos de engenharia naval eu raramente uso, mas facilitam nas discussões de vários assuntos. Com certeza o conhecimento de engenharia naval é relevante em uma empresa onde o principal ativo é o navio. Volta e meia ainda me deparo com temas mais específicos de transportes marítimos, como quantidade de viagens, cálculo de rotas, otimização de ativos. Mas acho que o grande ponto da engenharia naval que uso hoje é a visão estruturada de problemas complexos, com múltiplas variáveis e condições de contorno, a capacidade que desenvolvemos de compreender as alavancas do problema e os caminhos para resolvê-lo.
A estrutura dos portos do Rio de Janeiro e Santos está defasada? Ou, comparada com portos da Europa, ainda deixa muito a desejar?
Em relação à navegação nos portos, nos principais portos do mundo, você tem a figura do VTMS (Vessel Traffic Management System), que é análogo ao papel da torre de controle dos aeroportos, mas aplicado à navegação. É uma entidade que é certificada para exercer a função de controlador do porto, usando ferramentas de tecnologia e seguindo uma série de normas técnicas de segurança. Aqui no Brasil, até pouco tempo atrás, não havia nenhum porto certificado como VTMS. O fato de ter o VTMS certificado no porto traz maior segurança na movimentação de entrada e saída de navios, e aumenta a eficiência e vazão do uso do canal de acesso. Com mais tecnologia, segurança e mais controle, pode-se ter maior produtividade.
A cabotagem é uma forma lucrativa para o Brasil?
Sim, a cabotagem é um modal que traz uma série de benefícios para o Brasil, e vem crescendo. Este ano, trouxemos mais um navio na bandeira brasileira. É um mercado que, idependentemente do contexto econômico, vai continuar crescendo, porque traz uma solução que é benéfica diante das outras opções. A cabotagem requer um planejamento inicial quando se migra de outro modal, mas depois entra no fluxo do supply chain da empresa, gerando benefícios de custo, integridade da carga e segurança.
Como mulher, você sentiu alguma diferença, preconceito ou alguma forma de exclusão desde a época acadêmica até os dias de hoje? Qual seria sua dica para as engenheiras navais?
Olha, pensando na época de faculdade, eu diria que sim. A dica é a seguinte: bola para frente! Eu diria para as mulheres, toca seu barco, faz seu melhor, com muita auto-confiança. Mas minha mensagem principal vai para os rapazes: trabalhar sem preconceito é uma questão de competitividade para vocês. O homem que não sabe trabalhar com uma mulher tem uma desvantagem competitiva muito grande. Primeiro porque certamente terá, em algum momento, uma cliente, chefe, autoridade governamental, etc. do sexo feminino, com a qual ele não saberá lidar de forma eficiente. Depois que ele não terá o perfil adequado para assumir uma chefia, pois será incapaz de montar a melhor equipe, a mais meritocrática, pois estará limitado pelos seus preconceitos. E não me refiro só a preconceito de gênero, mas também de raça, religião, orientação sexual, nacionalidade etc.
Você acha que a indústria naval será retomada nos próximos anos?
Deve demorar um pouco. É necessária uma perspectiva concreta em relação ao futuro da economia para que retornem os investimentos do setor. Mas diria para vocês não limitarem sua visão apenas à construção naval. A formação de vocês traz uma série de conhecimentos, traz a habilidade de integrar diferentes aspectos (estrutura, estabilidade, hidrodinâmica, sistemas de governo, consumo, eficiência energética, materiais, gestão de ativos de alto valor etc.). De fato, vocês devem buscar mais opções, porque o mundo não para, está cheio de coisas acontecendo, novas tecnologias, novas formas de geração de energia, novos materiais sendo desenvolvidos, novas cadeias de suprimentos, e por aí vai. Basta entender o que vocês querem para o futuro e ver que o mundo está cheio de possibilidades.